Reportagem comprova que a futura E. F. Vitória a Minas executou serviços de engenharia na direção de Diamantina
No ano de 1904, na estação de Natividade, empresários mineiros e capixabas inauguram os primeiros 30 quilômetros de trilhos assentados da futura Estrada de Ferro Vitória a Minas, rumo ao audacioso projeto de ligar o centro mineiro ao litoral.
Embrenhar com uma estrada de ferro pelo interior dos dois estados, ligando a região do Vale do Rio Doce e do Vale do Jequitinhonha, com a intenção de transportar o eminente volume de cargas gerado pela ocupação das terras férteis do Vale do Rio Doce e do próspero Alto Jequitinhonha tornara-se realidade. Tal sonho alvoreceu ainda em 1890, quando o Vale do Rio Doce não passava de uma mata virgem, habitado por remanescentes dos índios aimorés botocudos.
Liderado pelos engenheiros Pedro Augusto Nolasco Pereira da Cunha e João Teixeira Soares, para aqueles empreendedores que acreditavam no retorno do investimento com o progresso que despontaria no rastro da ferrovia, como a exploração da abundante madeira nobre ao longo do Rio Doce, implantação da agropecuária, transporte da emergente lavoura cafeeira no Espírito Santo e o transporte de passageiros, bem como o escoamento de mercadorias do centro-norte mineiro, eram mais que animadores.
Na região central do estado, eixo da mineração colonial, desenvolviam-se já, diversas atividades da agropecuária e da mineração remanescente. Existia ainda a modesta malha ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil, ligando Montes Claros, Pirapora, Corinto e Uberaba. A nova estrada de ferro alcançaria o Rio Doce na altura de Colatina, seguindo margeando o rio até a localidade de Naque, onde desviaria-se para a margem do Rio Santo Antônio, seguindo seu curso até Peçanha e posteriormente Diamantina, até conectar-se com a Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB).
Os trilhos chegam a Nack (Naque)
A odisseia que transpôs todo o tipo de infortúnio e adversidade, em 1911, chega à localidade de Naque, a 417 km do marco zero da linha, onde o Rio Santo Antônio desaguava suas mansas e profundas águas no Rio Doce. Na localidade, a ferrovia construiu uma estação de nome Nack, referência ao povo indígena
Com o nome inicial de Estrada de Ferro Vitória-Peçanha, depois Estrada de Ferro Vitória-Diamantina, à partir de Naque, restava à frente, 266 km até a cidade dos diamantes.
A notícia
Com as obras avançando à margem do Santo Antônio, é anunciado em Estocolmo (Suécia), a descoberta de fabulosas jazidas de minério de ferro em Itabira, pertencentes às companhias inglesas: Itabira Iron Ore Company e Brazilian Iron and Steel.
Diante da tal notícia de repercussão internacional, os empreendedores da nascente ferrovia jamais imaginavam que aquele fato noticiado alteraria radicalmente seus planos, inclusive o traçado e o nome da estrada de ferro. Devido ao interesse dos proprietários das minas em Itabira em exportar o minério de ferro pelos portos de Vitória, e a necessidade de uma ferrovia para tal transporte, os ingleses propuseram aos empreendedores da estrada de ferro em curso, a mudança de seu traçado para Itabira, que implicaria abandonar o traçado original que levaria os trilhos até Diamantina e desviá-lo para os pés do altaneiro Pico do Cauê. Com o novo projeto, os trilhos voltariam a seguir pelo curso do Rio Doce, até a confluência do Rio Piracicaba, de onde avançaria sinuosamente até as minas de minério de ferro.
A proposta negociada e consolidada entre os sócios da ferrovia e o proprietário das minas, resultou em novos aportes financeiros, novo projeto e a mudança do nome da ferrovia, vindo a denominar-se então Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM). O novo traçado levaria a ferrovia a enfrentar os mais tenazes desafios de sua história, rompendo uma região endêmica em insalubridade como malária, tifo e impaludismo, principalmente nas proximidades da confluência do Rio Piracicaba com o Doce e uma topografia desafiadora no Médio Piracicaba.
O que parecia ser fácil, mostrou-se desafiador logo ali, em Naque, nos primeiros passos na direção das minas em Itabira. A ferrovia teria que construir um longa ponte que atravessaria o caudaloso Rio Santo Antônio. Além de todo o serviço executado na Baixada de Diamantina seria perdido.
Amplamente registrado em literaturas sobre a história da EFVM, a mudança do curso da linha restringe-se apenas à decisão de seus protagonistas, entretanto, o avanço das obras na direção da cidade colonial de Diamantina, se tornou invisível na historiografia ferroviária. Os vestígios da construção da linha perderam-se no tempo e nas narrativas desde então. Tal fragmento incólume da história, ou seja, a comprovação física das obras executadas no traçado original, na direção do centro-norte mineiro, passou a ser um imperativo jornalístico para a revista Caminhos Gerais, que empreendeu diversas investigações no contexto geográfico e da história oral.
Vestígios encontrados
Cerca de um século depois da remota obra de engenharia, em 2015, a reportagem da Caminhos Gerais localiza o que viria a ser um relevante marco histórico da construção do trecho que levaria os trilhos da Estrada de Ferro Vitória-Diamantina até o Alto Jequitinhonha. Tal obra, paralisada antes mesmo que os trilhos fossem assentados, os vestígios encontrados comprovam que Naque é muito mais que um ponto geográfico no mapa da linha, é uma “esquina” da história da ferrovia, onde o destino fez a sua curva para outros horizontes.
O local que sobressai na histórica obra de arte executada por laboriosos braços humanos, situa-se a cerca de 3 km da antiga estação, à margem o Rio Santo Antônio. Trata-se de um corte na extremidade de um monte rochoso, ligado a um notável nivelamento do terreno. Instigado pelo ímpeto investigativo, a reportagem questionava por que o corte naquela extremidade da rocha, se poderia ter contornado o monte. Buscando uma resposta para o alívio da curiosidade, a reportagem perguntou à sitiante Maria Helena, que acompanhava a equipe, até onde as grandes enchentes do Rio Santo Antônio alcançava seu leito. A sitiante que acreditava que aquele corte na rocha fosse obra de antigo garimpo, afirmou que as maiores enchentes nunca haviam atingido aquele local. A afirmação nos permitiu concluir que a construção da ferrovia levava em conta a elevada pluviosidade típica da região.
Outras construções em Naque
Em Naque também, a ferrovia executou uma das mais importantes alterações de seu traçado, além da histórica mudança de rumo. Na localidade, ainda com o nome Nake, a EFVM desativou sua primeira ponte, uma grandiosa obra de engenharia, feita em treliça metálica, nas proximidades da atual rodovia BR-381. construindo uma outra, também em treliça metálica, com cinco vãos, mais próxima do Rio Doce. na década de 1940, período da grande remodelação da linha. As obras de melhoramentos, em execução pela empresa americana Morrison Knudsen foram então paralisadas em devido à 2ª Guerra Mundial.
Na década de 1970, uma outra relevante intervenção ferroviária aconteceu em Naque, quando a Cia. Vale do Rio Doce construiu uma imponente ponte de concreto armado para atender a duplicação da linha, que também contava com um novo traçado e um túnel. Concluída, a ponte metálica foi demolida.
Vários capítulos da história da Estrada de Ferro Vitória a Minas remetem à história de Naque de forma intrinsecamente conectada. É a história de uma das maiores e mais ricas ferrovias do mundo, cada dia se reencontrando com a história de um povo por meio de seus vestígios arqueológicos. Fatos que comprovam que o futuro e o passado transitam pela mesma estrada, e que a diferença está no tempo e nas relações entre os atores que construíram essa trajetória.