A revista Caminhos Gerais publica o incrível primeiro capítulo “Uma viagem inesquecível” do livro de Abel Carvalho (1928 – 2013), no mês que ele completaria 96 anos
Essa insólita aventura faz parte da história de vida de Abel Carvalho (1928-2013), realizada no período em que a Estrada de Ferro Vitória a Minas paralisou totalmente suas atividades, devido à grave crise financeira provocada pela Segunda Guerra Mundial.
Afastado juntamente com todos os empregados da ferrovia por tempo indeterminado, aos 20 anos de idade, Abel Carvalho, então encarregado das máquinas da Via Permanente e exímio operador de tratores, escavadeiras, patrols, inclusive locomotivas, viaja até Belo Horizonte à procura de um novo emprego.
Chegando à capital mineira, o jovem Abel dirige-se a uma construtora de um engenheiro conhecido como Dr. Sergio, onde ali, reencontra um amigo, ex-mecânico de escavadeira da Cia. Vale do Rio Doce. Em meio a diversos equipamentos de terraplenagem, o amigo mecânico o apresenta ao engenheiro, que ali mesmo, é contratado pela empresa. Abel só não imaginava que ali, começaria uma das mais inesquecíveis viagens de sua vida.
A seguir, nas palavras dele próprio, transcrita de seu livro autobiográfico “Trilhas, Trilhos e Rios da Minha Vida”, editado em 2003 pela Editora Formato Lê, a Caminhos Gerais no mês que ele faria 96 anos, publica na íntegra o capítulo “A viagem inesquecível”, que além de conduzir a uma envolvente narrativa marcada por gestos de coragem e solidariedade, tem um elo de conexão com a história de um ex-presidente do Brasil.
“A viagem inesquecível
Essa história é um pouco longa, mas é muito interessante, tanto pela época em que aconteceu, como pela quantidade de peixes mencionada; também porque dela tomou parte uma pessoa que, mais tarde, seria nosso Presidente da República.
Trabalhando na Estrada de Ferro Vitória a Minas desde junho de 1942, mês e ano de criação da CVRD – Companhia Vale do Rio Doce, quando entrei com 13 anos de idade, fui colocado, em 1949, à disposição de uma firma norte-americana chamada RMK, mais conhecida como Morrison, que empreitara a reconstrução da ferrovia, e cuja sede ficava na cidade de Governador Valadares.
Em meados desse mesmo ano, a Vitória a Minas entrou em sua maior crise e os norte-americanos tiveram de paralisar a empreitada.
Eu, então com vinte anos, já estava como encarregado de máquinas e operava tratores, patrolas e escavadeiras, entre outras. Empregado, mas licenciado, fui até Belo Horizonte. Assim que cheguei, me dirigi, por indicação, ao pátio de uma firma que tinha dezenas de máquinas. Lá, encontrei, por acaso, um amigo com o qual trabalhara, de nome José Marcos, mecânico, especialidade em escavadeiras North West. Perguntei a ele se naquela firma havia vaga. Ele respondeu que para mim não faltavam vagas e disse também que um certo Dr. Sérgio importara, dos Estados Unidos, um trator Caterpillar D8 e precisava de um operador para levá-lo até a uma fazenda em Mato Grosso, na região do Araguaia.
Pegamos um táxi e fomos ao encontro do Dr. Sérgio. A princípio ele me considerou muito novo, mas o Sr. José Marcos garantiu que eu daria conta do recado. O Dr. Sérgio perguntou onde eu estava hospedado; saímos com ele e, depois de deixarmos o Sr. José Marcos de volta à oficina, passamos pela pensão. Peguei minha mala e fui para um quarto anexo ao seu escritório, onde me alojei.
Mack A51
Três dias depois, chegou um caminhão Mack A51, modelo 1948, traçado, carreta pescoço de ganso, trazendo o trator, baldeado direto do navio. Era um Caterpillar D8, Série 14A, novo, com a mais avançada tecnologia da época.
D8 14A
Durante dez anos, a Caterpillar não mudara nada em seus tratores. Eram muito pesados para operar, esquentavam a ponto de queimar a perna do operador e faziam um barulho infernal. Esse 14A, porém, veio com grandes melhoramentos, entre os quais, e mais importantes, reversão na caixa de marcha, embreagem hidráulica, freio e direção conjugados, lâmina com controle hidráulico e silencioso. Daí para cá, a Caterpillar tomou a dianteira na fabricação de tratores e, talvez, seja hoje a maior do mundo.
O Dr. Sérgio perguntou ao motorista do caminhão se ele topava levar a máquina até o Mato Grosso. Ele, um senhor moreno, de uns 60 anos, muito forte, topou a parada, mas exigiu dez pneus novos, quatro rodas, algumas molas e adiantamento para a viagem. Marcamos a saída para o dia seguinte, ou seja, 1º de junho de 1949.
De acordo com os cálculos, se andássemos duzentos quilômetros por dia, estaríamos no destino em 11 dias. Levamos cozinha, combustível, um colchão de palha e caímos na estrada. O motorista, que logo chamei de Tio, dirigia de sete às dezoito horas, parando para fazer a comida e dormir. Sempre tirava uma soneca após o almoço. No quinto dia, começou a dar sinal de cansaço e perder a média. No sábado, dormimos em uma cidade próxima à divisa dos Estados e, no domingo, propus um descanso.
Logo cedo, enquanto o Tio foi até à cidade para reforçar a cozinha, troquei o óleo do Mack e lubrifiquei todos os pinos da carreta e do caminhão. Fizemos o almoço e, em seguida, ele resolveu tocar mais um pouco. Andou perto de cinquenta quilômetros e senti que estava misturando as marchas. Foi quando me ofereci para dirigir um pouco.
Ele já sabia que eu tinha experiência com caminhões Autocar Super White e International KB11. Após várias recomendações, passou-me o volante. Saí devagar, até dominar o bruto. Em pouco tempo, estava tranquilo. O Tio ficou tão despreocupado que acabou dormindo. Dirigi até à meia-noite, quando parei em um posto de gasolina. Acordei o Tio, para que ele deitasse na poltrona, e fui para a carreta, dormir no colchão de palha. Acordei com ele ligando o Mack. Após o café, caímos na estrada e, daí pra frente, cada um dirigia um trecho.
A viagem foi mais tranquila e, no décimo dia, chegamos a um lugarejo, onde deixamos a estrada principal e pegamos uma estrada à esquerda, que ia dar no Rio Araguaia. Nos primeiros cem quilômetros, descarreguei a máquina dez vezes para atravessar areiões e córregos.
Viajando pelo areião
Andamos mais cinquenta quilômetros e não deu mais para o caminhão continuar com a carreta. Além daquele ponto seria impossível voltarem sem a ajuda do trator. Decidimos então prosseguir com o trator rodando e apenas o cavalo (caminhão sem a carreta). Foi quando surgiu um caminhão Ford F7, vindo do Rio Araguaia. Perguntei ao motorista se não queria levar nossa carga de combustível e alguns cabos-de-aço até o rio. Ele disse que levaria, mas, primeiro, tinha que ir até à BR, próxima, hoje trecho da Belém-Brasília.
Foi cordialíssimo ao se oferecer para acompanhar o Mack em seu retorno, para auxiliar enquanto fosse preciso.
Deixamos a carga na beira da estrada, para ser recolhida pelo F7 na volta, e despedi-me do Tio com lágrimas nos olhos. Mais ou menos às onze horas, ele tomou o caminho de volta e eu, com o D8, segui para o Rio Araguaia.
Rodei até às oito da noite, quando encostei ao lado de um jatobá e pernoitei.
De madrugada, liguei a máquina e parti, naquele cerradão sem fim. Naquela jornada que parecia não terminar, eu respirava a fumaça da tinta nova do motor que queimava com o forte aquecimento. Mais ou menos às dez horas, entrei numa mata mais fechada. E, uma hora depois, surgiu o mais lindo rio do Brasil.
Rio Araguaia
Para mim, criado na região do Rio Piracicaba, estar às margens do Araguaia era deslumbrante. Ali moravam algumas famílias, que vieram correndo para ver o trator. Foi aí que aconteceu uma metamorfose. O trator, que até então era “ele”, passou a ser “ela”. Na região, eles chamavam trator de “tratora” ou simplesmente de “máquina”. Enquanto todos procuravam “pegar” na tratora, fui à beira do rio e tive a maior surpresa: ali havia peixe como eu nunca imaginara ver um dia.
Vindo de uma região em que só se viam lambaris e bagres pequenos, ali, na beira do Araguaia, deparei com umas vinte toneladas de pirarucu, salgado e já seco, em fardos com até dois metros de comprimento.
Num outro monte, outro tanto de couro de jacarés. Cada couro enorme.
Numa pequena praia, um cercado com umas cem tartarugas vivas.
No porto, umas canoas com grande quantidade de tucunarés, ainda vivos, de mais de quatro quilos. Estavam aguardando uma balsa para Belém.
Uma senhora preparou-me o almoço à base de peixe, claro.
O balseiro deixara o aviso de que fora levar uma carga de sal a uma fazenda e que chegaria à tarde. Chegou quase à noite. Quando vi a balsa, achei-a muito pequena. Mas ele disse que ela era para quarenta toneladas e me deixou mais tranquilo.
No outro dia, logo cedo, embarquei o trator, os tambores, que o motorista do F7 havia deixado durante a madrugada, e partimos com destino à fazenda. Eu estava preocupadíssimo com a balsa, mas, o balseiro, nem aí. Parecia que levava uma carga de sal ou madeira. E eu, pensando no trator de mais de cento e cinquenta mil dólares, que viajara uns vinte mil quilômetros, sujeito a desaparecer nas águas do Rio Araguaia.
A balsa era impulsionada por um motor Detroit, três cilindros, a diesel. Apesar de pequeno, andava até bem, pois as águas do rio eram quase paradas. Logo me esqueci do perigo. A cada curva do rio, montes de jacarés, capivaras, mutuns, etc. embelezavam a paisagem.
Foi uma viagem impressionante, sem um único morador nos dois lados do rio. Quase à noite, chegamos a um ponto onde iríamos fazer a descarga.
Perguntei ao balseiro se era ali a fazenda e ele disse que dentro da propriedade não tinha como atracar, pois não havia barranco, mas, dali até lá, era perto. Amarramos a balsa em uns arvoredos grossos e descarreguei a “tratora”.
Quando me senti em terra firme, fiquei aliviado e terminou a preocupação.
Continuamos de balsa até uma praia mais próxima à fazenda.
O capataz, ou vigia, veio ao nosso encontro e nos chamou para a casa. Uma pequena casa de madeira, com quatro cômodos e uma pequena cozinha.
A área aberta em torno dela tinha pouco mais de um hectare.
O vigia, um senhor negro e gordo, da região de Raul Soares, Minas Gerais, devia ter aprontado alguma coisa em sua terra e se refugiado ali, pois fazia questão de não se identificar, sendo conhecido apenas como Mineiro. Jantamos carne de veado ensopada e palmito.
De manhã, descarregamos os tambores e o resto da tralha. A balsa retornou e eu, mais o Mineiro, fomos buscar o trator. Na margem do rio existia somente uma picada. Tanto que foi preciso derrubar algumas árvores para passar com o trator. Foi aí, que vi a fragilidade da mata diante de um D8. Dava pena ver as árvores caindo, só com o encosto da máquina. Apenas uns poucos jatobás e paus-d’arco exigiam mais esforço.
No meio do caminho, encontrei-me com cinco homens que haviam pegado a cerca da fazenda, para construir sob empreitada. Nunca tinham visto um trator. Ficaram encantados e seguiram atrás, acompanhando a máquina, até à fazenda. Cortamos um grande galho de jatobá e fizemos uma zorra, espécie comum de trenó feito de forquilha de árvore, para transportar tambores, arame farpado e estacas.
A recomendação do Dr. Sérgio era para, em primeiro lugar, aumentar o campo de pouso, então feito à mão, de quatrocentos para mil metros no comprimento e de dez para quarenta metros na largura; depois, construir uma estrada em todo o perímetro da propriedade, que era de dez mil hectares. O perímetro dava cerca de quarenta quilômetros. Depois de conferir todo o nível de óleo e abastecer, fui para o campo de pouso, iniciando o serviço. Em dias, derrubei a mata e fiz o nivelamento geral em todo o campo.
A construção da estrada
Daí para a frente, parti para a construção da estrada, em cujo centro seria construída a cerca. Iniciei com vinte metros de largura nas partes planas, tendo que fazer, em alguns lugares, pequenos aterros, para a cerca não ficar submersa na época da chuva.
Enquanto abria a estrada, os homens iam preparando estacas para a cerca, tiradas dali mesmo. Eram pau-d’arco, sucupira amarela e aroeira.
Cinco dias após estar trabalhando, chegaram o Dr. Sérgio e o seu piloto. Ficaram entusiasmados com o campo de pouso e com o trabalho da máquina. Trouxeram, entre outras coisas, algumas novidades para a cozinha.
Contei para ele toda a história da viagem. Ele disse que, por duas vezes, sobrevoou a carreta. Mas não o vimos. Reuniu a todos e disse que, dali a três dias, chegaria com uns amigos para uma pescaria. E era para aguardarmos na sede, para transportarmos algumas coisas que iriam trazer.
Na manhã do dia marcado, chegou um avião barulhento, desses em que o motor fica todo aparecendo. Era daqueles que, se o motor parasse, ele embicava para baixo, na hora. Não planava nem um metro. Chegou também, quase junto, o avião do Dr. Sérgio.
Trouxeram dois motores Penta Volvo, muito pesados. Trouxeram também gasolina, algumas bebidas e dez quilos de carne para assar. Nos dois aviões vieram seis pessoas. Após cumprimentar toda a turma, partiram para a casa.
O futuro presidente do Brasil
No avião barulhento, vieram o Dr. João Goulart, seu piloto e um amigo. No avião do Dr. Sérgio, vieram ele, o piloto e um de seus sócios.
Enquanto preparavam a tralha, o Dr. João Goulart mandou acender uma fogueira, para assar um pouco de carne. Enquanto a carne assava, tomavam whisky. Almoçaram e tiraram uma soneca no piso da casa. Às quatorze horas, partiram para a pescaria, com duas canoas a motor.
Antes de partir, o Dr. Sérgio pediu que acendêssemos uma fogueira na barranca do rio, para marcar o porto à noite, quando voltassem. Propus a ele colocar o trator na margem do rio e, quando se aproximassem, eu acenderia o farol. Acharam ótimo e partiram rio acima. Lá pelas vinte e três horas, escutando o ronco dos motores, acendi o farol do trator. Em poucos minutos, encostaram no porto. Era inacreditável a quantidade de peixes que traziam. Na canoa do Dr. João Goulart vieram duas piraúbas, de quase cem quilos cada uma, e três filhotes menores. Na do Dr. Sérgio vieram dois pirarucus, de dois metros de comprimento, e uns trinta tucunarés, de até seis quilos cada.
Subiram para a casa e ficamos na beira do rio limpando os peixes. Um dos homens da cerca era especialista em tirar os filés de pirarucu. O lugar parecia um matadouro. Carregamos tudo para casa, onde foram dependurados para escorrer.
Quando terminamos, todos já estavam dormindo no assoalho da casa, tendo como travesseiro um punhado de estopa do trator. Na manhã seguinte, o piloto partiu com os peixes para Goiânia, onde uma caminhonete aguardava com uma caixa de gelo. Em pouco mais de uma hora, estava de volta. Às nove horas da manhã, partiram para uma pescaria diferente: uma pesca de tucunaré, com um tal de “currico”. Um tipo de pesca com um pedaço de chapa côncava de aço niquelado, com um grande anzol aparafusado no centro, coisa grosseira, chamada, pela semelhança, de colher, amarrada numa barquinha (corda usada em prumos) de mais ou menos vinte metros e arrastada pela canoa, em velocidade reduzida.
Entrando nos lagos, era só lançar a colher, e logo os tucunarés eram fisgados.
Os lagos eram tão fartos que as duas canoas regressaram com mais de 80 quilos de peixes, de mais de quatro quilos cada um.
Colocaram tudo dentro de dois sacos e partiram logo, para que os peixes chegassem frescos ao destino.
Despediram-se, prometendo voltar em breve.
Continuei com a construção da estrada, indo e voltando para transportar as estacas para a cerca. Vinte dias depois, os homens da cerca se mudaram da casa para um local mais de acordo com o andamento do serviço e perto de um córrego, pois já estávamos tendo de andar vinte quilômetros todos os dias. Também fui com eles. Ali, era trabalhar e dormir. Nem rádio existia para passar o tempo.
Às quatro da manhã, estávamos todos de pé. Enquanto um preparava um “tira gosto”, outro coava o café e outros lavavam vasilhas. Às cinco horas, seguíamos para o serviço e, às dezessete, regressávamos. Jantávamos após o banho no córrego e, às dezenove horas, todos estavam em suas tarimbas.
Às vezes, deixava a tratora funcionando e entrava uns quinhentos metros na picada, para verificar a direção. De lá, escutava o funcionamento da máquina, tão perfeito como um relógio.
Passados uns três dias, apareceu o capataz, com a sua incomparável carabina CZ 22mm. Olhou para o varal da cozinha e viu que a carne estava pouca. Desceu, margeando o córrego e, em pouco, retornou, carregando um veado mateiro de mais de cinquenta quilos.
Procurei o lugar do tiro e não achei. Ele disse que só atirava na cabeça: – A cinquenta metros, eu coloco uma bala na orelha de uma anta e ela só assenta.
Nunca vi ninguém atirar tão bem como aquele senhor.
À tardinha, após a janta, a turma se sentava em uns toletes de madeira e acendia uns enormes cigarros de palha. Ficavam algum tempo soltando baforadas de fumaça. Parecia que era relaxante e ajudava a esquecer aquela solidão, tal era a sensação de prazer que eles demonstravam. Podia faltar qualquer coisa, de menos o fumo. O Mineiro era o responsável pelo fumo. Sempre ficava um pouco para emergência. Na lista de compras para cozinha o fumo estava na frente.
Esqueceu o fumo
A data prevista para a chegada do avião com as compras foi alterada e o fumo se esgotou. No primeiro dia sem cigarro, eles olhavam mais para cima que para o chão, tentando escutar o ronco do avião. Este veio logo no dia seguinte. E o dono do armazém se esquecera de colocar o fumo no saco de compras.
O piloto, vendo a cara de velório da turma, pegou dois maços de cigarros dos seus e deu para os homens. Imediatamente, decolou com o avião e foi buscar fumo, num local qualquer que tivesse campo e fumo.
Os peões ficaram preocupados com a atitude do piloto, pois o adoravam. Além das coisas que ele sempre trazia para eles, ainda lhes proporcionava um passeio de avião.
Pouco tempo depois, ele chegou. E veio do campo carregando um rolo de fumo lacrado. Foi aquela festa. Nesse meio tempo, o Mineiro fritara uma cuia de torresmos, do toucinho vindo nos mantimentos.
Colocou os torresmos na mesa, junto com farinha e uma garrafa de pinga, para que todos saboreassem.
O piloto pegou um anzol, cortou um pedaço de toicinho e falou que ia para o rio brincar com os piaus.
Três dos homens da cerca pediram para o piloto aguardar e sumiram. Foram para a mata. Pouco depois, chegaram, suados, com dois feixes de palmito, dois litros de mel puríssimo, de abelhas mumbuca, e uma paca, já ferventada, morta na noite anterior. Entregaram ao piloto, como gratidão pelo que ele fizera. E ainda lhe devolveram um dos maços de cigarros.
Hoje, quando vejo as grandes campanhas contra o cigarro, fico pensando quanta coisa pior do que o cigarro deva existir por aí afora. Milhares de médicos, aparelhos de última geração, laboratórios produzindo remédios a todo vapor, uma farmácia em cada esquina e as pessoas ainda morrem das mesmas doenças do princípio do mundo.
Continuamos trabalhando, tendo a máquina como elemento principal. Ela era como um de nós. Decorridos dois meses, os homens da cerca resolveram ir visitar seus familiares e levar dinheiro. Convidaram o capataz para ir com eles, aproveitando que eu estava ali. Havia dois anos ele não arredava o pé daquela mata.
Um barco subia o rio a cada quinze dias e voltava dois dias depois. Enquanto estavam fora, peguei a máquina e aumentei a abertura em torno da casa, de um e meio para dez hectares. Quando chegaram, ficaram surpresos com a clareada que ficou o local.
Trouxeram rapadura, farinha de cuba e uns dois litros de pinga. O capataz ficou encantado com a viagem e trouxe alguns doces caseiros como presente. Estávamos em meados de setembro e a passarinhada parecia estar entrando no cio, tal era a algazarra que aprontavam. No topo das árvores, papagaios, tucanos, araras cantavam o mais alto que podiam. A meia altura, jacus, jacutingas, mutuns, etc. No chão, jaós e o príncipe da mata, o velhaco macuco.
Dos bichos, o bugio, ou barbado, entoava o ronco que trazia uma tristeza na mata. O cerrado virava uma festa, tal era a algazarra. À tardinha, me sentava na barranca do rio. Era uma visão deslumbrante. A todo instante, bandos de patos selvagens subiam e desciam o rio e botos vinham à tona. Nas praias, jacarés e capivaras aproveitavam o resto da tarde. As cigarras cantavam por todos os lados, anunciando a proximidade das chuvas. Era final de setembro. No dia 24, naquele lugar ermo, tão longe de casa e de meus entes queridos, eu atingi a maior idade.
Despedida
Com três meses, estava concluída a estrada no perímetro da fazenda. De cerca ainda faltavam uns cinco quilômetros para terminar, mas todas as estacas já estavam espalhadas. Enquanto terminavam o trabalho, recolhi o trator para a sede, onde preparei o terreno para a construção do curral, alguns tanques de água e algumas descidas até o rio.
Um fazendeiro pousou no campo para conhecer o trator e trouxe um bilhete do Dr. Sérgio, avisando que estaria ali dentro de uns quinze dias.
Mais ou menos na data, chegaram o Dr. Sérgio e o piloto, trazendo o pagamento da empreitada e uma lona para cobrir a tratora.
Correu um trecho da cerca e o que foi feito junto à sede. Ficou muito contente com todo o serviço. Enquanto isso, o piloto pegou a canoa e foi buscar uns tucunarés. Era só atravessar o rio, entrar num pequeno lago e a pescaria estava feita.
A máquina já estava toda limpa e engraxada, foi só jogar a lona em cima e amarrar.
Nos reunimos todos para as despedidas. Os cinco homens da cerca tomariam o barco três dias depois, quando o Mineiro voltaria a ficar sozinho naquele ermo.
Foi uma despedida emocionante. Ao Mineiro, dei meu relógio de bolso – um Omega -, o único que tínhamos para olhar as horas todo aquele tempo.
Aos da cerca, dei três mudas de roupas, uma capa gaúcha e um par de botinas.
Partimos no avião, levando uma pequena mala, um saco com tucunarés e duas pacas temperadas. Em Goiânia, uma caminhonete International KB1 nos esperava com o motorista. Chegamos ali à tarde. Após o jantar, partimos para Belo Horizonte. Rodamos parte da noite, o dia todo e, só no outro dia, chegamos.
Acertei a conta com o Dr. Sérgio e saí para comprar outro relógio, roupas e um Ray Ban para o Zé Marcos.
O Dr. Sérgio fez questão de ir junto e não deixou que eu pagasse nada. Despedi-me e, naquela noite mesmo, tomei o trem para Governador Valadares.
Retorno à Cia. Vale do Rio Doce
Ali chegando, soube que a Morrison estava pegando tratorista a laço, para trabalhar em Barra do Piraí, Rio de Janeiro. A Vale também fizera um grande contrato para venda de minério e comprara muitas máquinas.
Reingressei na Vale, onde fiquei até me aposentar. Ali, passaram-me mais de uma centena de máquinas, novas, surpreendentes, mas nenhuma deixou saudades como aquela do Dr. Sérgio.
Dois anos mais tarde, encontrei-me com ele, na estação de Ipatinga. Eu trabalhava na Variante do Córrego Ipanema. Ele acabara de importar dois tratores Allis Chalmers HD19, para trabalhar na construção da estrada de Timóteo à Ponte Queimada.
Esses tratores ficaram quinze dias embarcados no pátio do km 441, até o final da construção da variante. A ponte sobre o córrego, no centro de Ipatinga, não permitia a passagem dos tratores, por causa do gabarito.
Estávamos trabalhando com doze tratores Cartepillar D8, Série U, fabricados em 1943. Levei o Dr. Sergio ao pátio da oficina e lhe mostrei dois HD19, fabricados em 1949, já sucateados. Ele disse que só comprara os HD19 porque a Cartepillar lhe pedira um ano de prazo para a entrega do D8.”
FIM DO CAPÍTULO “Uma viagem inesquecível”
Aposentado, Abel Carvalho adquire um trator de esteira Massey Ferguson para serviços gerais em sua fazenda em Antônio Dias. Abrindo estradas ou arando a terra, o trator continuou a fazer parte do dia a dia da vida de Abel.
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