
Com o êxodo rural, o monopólio dos supermercados e a proliferação de alimentos industriais, veio a extinção dos micro-proprietários rurais
Em mais um primoroso artigo produzido pelo marlierense Ênio Quintão Torres, o pesquisador nos relata sobre um período de significativa pujança econômica, derivada da intensa atividade rural no ainda distrito de Nossa Senhora das Dores de Babilônia (antigo Arraial da Onça Grande), atual Marliéria.
O autor deste artigo, que vivenciou a transição deste período que ele descreve como período de “trocas”, para o período do êxodo rural na direção das indústrias do aço no nascente Vale do Aço, sugere uma viável e possível alternativa para o retorno das trocas local, o “Projeto Feijão”.
Longe de uma visão utópica, porém, com um senso de real possibilidade louvável, Ênio busca o resgate da frugalidade das relações comerciais do passado, que pode não apenas restabelecer hábitos e costumes da vida simples e rural de Marliéria, mas também potencializar ainda mais a vocação para o turismo na região.
Ênio Quintão Torres nos leva a uma viagem no tempo, um certo passado de Marliéria, quando suas terras, além de produzirem alimentos em abundância para a própria população, sobrava para exportar em grande volume para outras populações, inclusive de São Domingos do Prata, município sede, e outras praças, pelos trens da Estrada de Ferro Leopoldina, em Saúde (Dom Silvério).
Comércio no Lombo de Burros e Trocas Local

A tropa de Juca Pontes, próxima ao sobrado de sua propriedade, no centro do distrito de de Nossa Senhora das Dores de Babilônia, atual Marliéria – Foto: Acervo particular
O principal destino dos produtos do distrito de Nossa Senhora das Dores de Babilônia (antigo Arraial da Onça Grande, atual Marliéria) era São Domingos do Prata, sede do então distrito. A trilha das tropas de burros compreendia o Morro do Pitiá, Onça e Alfié. O desejo maior de todos os tropeiros era deslocarem até a antiga Saúde, atual Dom Silvério.
Os tropeiros adquiriam tecido, querosene, medicamentos, ferramentas e sal, vindos de trem da então capital federal, Rio de Janeiro, a preço baixo e embarcavam o café e cereais a bom preço, diretamente sem intermediários, na estação ferroviária de Saúde. Todavia este feito era possível apenas para os fazendeiros e comerciantes mais bem estruturados. A maioria das tropas de burros deslocavam-se até o Prata e algumas apenas até Alfié.

Em Saúde (Dom Silvério), no trem da E. F. Leopoldina desembarcavam tecidos, querosene, medicamentos e ferramentas, e embarcavam o café e cereais de Marliéria – Foto: Acervo ferroviário
O trânsito de tropas de burros para São Domingos da Prata permaneceu intenso mesmo após a desativação da estação ferroviária de Dom Silvério. O Prata, durante um século, constituiu o principal centro comercial da região. Com a implantação da Companhia Acesita, em 1945, no atual município de Timóteo, o Prata veio a ser substituído pelo Vale do Aço.
Trocas Local:
Apesar da exportação e importação via São Domingos do Prata, a maior intensidade do comércio se dava pelas trocas na localidade. Todos plantavam milho, produziam rapadura e criavam porcos. Todavia, naquela época, todos moradores consumiam fubá e canjiquinha de milho, a rapadura, o arroz, o feijão, o toucinho (gordura) de porco e o leite produzido na própria localidade. Um exemplo; a minha família produzia rapadura. O que excedesse a demanda da família era vendido e quando a rapadura acabava eu ia comprar na fazenda mais próxima.

Em São Domingos do Prata, destinava grande parte da produção agrícola de Marliéria – Foto: Diló
A instalação de siderurgias em 1945, em Timóteo, e em 1962 em Ipatinga provocou o êxodo rural. Já o fim das trocas local veio a ocorrer, posteriormente, com o surgimento do monopólio dos supermercados. Os estabelecimentos comerciais antigos, as “vendas”, que forneciam cereais, toucinho de porco, rapadura, querosene, café em grãos e moído e cachaça foram substituídos, na década de 1970, pelas mercearias e supermercados de açúcar industrial, óleo vegetal, leite em caixinha e outros enlatados. As culturas diversificadas foram substituídas pela criação de gado e cultivo do eucalipto. A paisagem do município, que até então constituía-se do multicolorido das plantações de cana de açúcar, milho, arroz, árvores frutíferas e bananeiras transfigurou-se na monotonia do capim braquiária e eucalipto. O comércio das trocas no território foi sepultado.

Com a instalação das indústrias na região, como a Acesita em 1944 e Usiminas em 1962, parte da mão de obra rural de Marliéria desloca-se para a região – Foto: Acervo Fundação Aperam Acesita
As mudanças também tiveram aspectos positivos. Os ex-trabalhadores rurais, nas indústrias, foram contemplados pela CLT (FGTS, 13° salário, férias). Direitos que não haviam chegado ao campo. O lado perverso da industrialização e do monopólio dos supermercados foi a extinção do comércio local, o esvaziamento das grotas, fazendas e povoados rurais; a extinção dos micro-proprietários rurais.

Antigas fazendas em ruínas, outrora produtivas na região se extinguem com o passar do tempo – Foto: Mário de Carvalho Neto
Em 1950, o então distrito contava com 5.500 habitantes. A emancipação, 1953, ocorreu no auge do êxodo rural. Em 1960 a população despencou para apenas 3.600 habitantes. Em 10 anos a redução foi de 34,5%. Número abaixo que o existente há 58 anos atrás, em 1911, quando éramos 3.617 moradores. Pelo censo da última década somos 4.012 pessoas.
A maioria dos que foram trabalhar no Vale do Aço, com o tempo retornaram ao município de Marliéria. Isto amenizou em parte a catástrofe da evasão sofrida pelo município recém-emancipado. O retorno à terra de origem permanece nos dias atuais.

Sede do município de Marliéria – Foto: Elvira Nascimento
Necessitamos de criarmos alternativas para o retorno das trocas local. “Projeto Feijão”. Premissa: Todos os habitantes consomem feijão. Que tal incentivarmos o retorno do cultivo do feijão em todas as localidades, por um lado e, por outro, realizarmos uma campanha com os moradores no sentido de consumirem o feijão colhido na localidade?
Fontes:
– João Dias de Araújo (Zinho)
– José Moreira Torres, em memória
Ênio Quintão Torres
Dados do autor: Natural de Marliéria, nascido em 1953, graduado em psicologia pela UFMG em 1979, atuou como psicólogo e professor em Timóteo, Coronel Fabriciano e Marliéria, onde reside.
Muito boa e necessária reportagem história de resgatando o comércio através dos tropeiros de Marliéria, São Domingos do Prata, demais localidades do Vale do Aço. Parabéns a toda equipe produtora do trabalho.
Obs:
Viajo numa viagem incrível ao relembrar das histórias e “causos” que o meu grande amigo Edvaldo Quintão Torres, infelizmente já falecido, me contava na Acesita sobre Marliéria… abração prendada guerreira amiga Cristina,o grande amor do Edvaldo Quintão.