HOME HEADER 1 – FABRICIANO – IPTU PREMIADO

Mário Carvalho Neto é graduado em História, pós-graduado em Gestão Cultural e Patrimônio Histórico, jornalista e editor do site e da revista Caminhos Gerais, com publicação de diversos livros históricos e biográficos.

Antigos tropeiros tem reconhecimento no Vale do Aço

Os antigos tropeiros foram os precursores da integração regional do atual Vale do Aço; em alguns casos transportando mercadorias até Ouro Preto.

Ao findar a laboriosa atividade no início do século XX, alguns ex-tropeiros compraram um “pedaçinho de terra”, outros se aposentaram e outros se mudaram para a cidade, que muitas delas, surgidas desse vai e vem levando e trazendo mercadorias.

As primeiras atividades econômicas na região do Médio Rio Doce, precisamente na atual Região Metropolitana do Vale do Aço, compreendida por mais de 30 municípios, deve-se aos laboriosos tropeiros que por aqui percorreram ou mesmo se estabeleceram. Estes pioneiros que levavam e traziam mercadorias para os centros mais desenvolvidos, como Santa Bárbara, Mariana, Sabará, foram responsáveis pela pujante atividade agropecuária no passado.

Não apenas no aspecto econômico que este ofício permeou inestimáveis reflexos na vida das pessoas da região, mas também no intercâmbio comunitário e na mobilidade, sabendo-se que as estradas de hoje remetem aos traçados das trilhas abertas pelos tropeiros.

Pouco documentada, a história dos tropeiros são fragmentos de narrativas de ex tropeiros ou de descendentes que atuaram na região até a década de 1940, período do estabelecimento efetivo do transporte de cargas pelos trens da Estrada de Ferro Vitória a Minas e pelos caminhões das indústrias siderúrgicas que implantaram o extrativismo do carvão vegetal.

Reconstruir a história

 

A escassez de documentação comprobatória da atividade dos tropeiros tem considerado preciosos depoimentos como significativos referenciais historiográficos.

A reconstrução da história do tropeirismo na região, deve-se em muito à história oral reconstituída da memória do senhor Agenor Igídio dos Santos, nascido em 7 Cachoeiras, distrito de Ferros, local de intensa idas e vindas de cargas, Leandro de Sá, de Antônio Dias, Geová …. , Miguel Arrudas e Mestre Santana de Santa Vitória dos Cocais, região rural de Coronel Fabriciano, Jeová Aguiar, colecionador de artefatos tropeiros etc. São depoimentos repletos de detalhes que nos trazem uma exata dimensão da dinâmica da atividade. Há relatos de que transitavam cerca de 200 tropas entre Cuminheira em Joanésia á serra dos Cocais com destino às canoas do Rio Piracicaba e ao centro do estado.

Uma das ações de reconhecimento e valorização do tropeirismo foi a instituição do Dia do Tropeiro por decreto de lei em Santana do Paraíso e Coronel Fabriciano, seguido da confecção e doação do monumento ao tropeiro em ambas as cidades pela Emalto Indústria Mecânica e a promoção da Festa dos Tropeiros, que acontece anualmente.

Gastronomia, musicalidade, encontros festivos e contação de causos são empreendimentos resultantes deste resgate que também propiciou a materialização de legados culturais que permanecerão não apenas na memória, mas na histórica, cravada no dia a dia de numerosos descendentes laureados de orgulho de seus ancestrais.

Este site publica a série de reportagens e entrevistas publicadas na revista Caminhos Gerais, pioneira na reconstrução deste valoroso roteiro historiográfico e um vídeo inédito, compartilhando aos internautas a dura, porém recompensadora aventura destes destemidos desbravadores.

Concebido por Mário Carvalho Neto, confeccionado pela Emalto Indústria Mecânica, o Monumento ao Tropeiro em aço, foi doado pela Emalto, quando foi instituído o Dia Municipal do Tropeiro, comemorado na primeira semana de maio como a Festa do Tropeiro – Foto: Elvira Nascimento

 

Também doado pela Emalto Indústria Mecânica, o Monumento ao Tropeiro em Santana do Paraíso, homenageia os fundadores da cidade – Foto: Elvira Nascimento

Inauguração do Monumento ao Tropeiro em Santana do Paraíso no dia da Festa do Tropeiro

 

Em Marliéria, os tropeiros também receberam justa homenagem, com a instalação de um monumento

 

O começo

Tudo começou quando eu e a fotógrafa Elvira Nascimento partimos em uma viagem à Ipoema, no intuito de produzir uma reportagem sobre uma das mais tradicionais festas religiosas do distrito itabirano. Lá, encontramos Carlos Roberto Solera, um dos mais respeitados pesquisadores sobre o tropeirismo no Brasil, que gentilmente cedeu o artigo publicado na edição impressa. Ele é um dos fundadores do ecoturismo no Brasil, atividade que nasceu em Lages, interior do Paraná e se multiplicou por todo o país. Carlos. As experiências do pesquisador narradas para a equipe da Caminhos Gerais foi o bastante para que a revista empreendesse o importante projeto de investigar o traçado original dos antigos tropeiros que cortavam a Microrregião do Vale do Aço, no Médio Rio Doce. Eles vinham de Joanésia, Mesquita, Cubas, Ferros e Antônio Dias com mercadorias para as atuais cidades de Coronel Fabriciano, Timóteo e Ipatinga.

Os produtos enchiam as canoas ancoradas no Porto da Barra do Calado, no antigo Calado (hoje Coronel Fabriciano) com destino à Figueiras (Governador Valadares). Os relatos contam que a região rural do atual Vale do Aço era cortada por sinuosas trilhas de tropeiros e que o trânsito de tropas era intenso. Relatos dizem ainda que era comum 250 animais de cargas indo, se encontrarem com outros 250, vindo. Testemunhas dizem também que a maior parte das atuais estradas de rodagem originou-se dessas trilhas construídas por mãos humanas. Tendo essas narrativas como ponto de partida, a equipe da Caminhos Gerais traçou seu plano de ação, que era identificar os antigos caminhos que transformaram em estradas e os caminhos que ainda continuavam em seus primitivos traçados, sem as marcas das máquinas e automóveis, para elaborar um mapa coordenado por GPS com o intuito de exploração turística ou mesmo acadêmica.

O mapa mostra as antigas trilhas dos tropeiros, que até a primeira metade do século XX, ligavam com grande intensidade, as regiões de Joanésia, Mesquita, Ferros, Antônio Dias, o antigo povoado do Calado (Coronel Fabriciano), Timóteo e Ipatinga.

O último dos tropeiros

A pesquisa iniciou-se então na casa do ex-tropeiro Geneval Batista do Nascimento, de 67 anos, cujo pai, José Cirilo do Nascimento, e o avô, José Batista, também praticaram a atividade em Joanésia, na localidade de Cominheira. Geneval, que iniciou na lida ainda aos 14 anos de idade, e que se diz ser o último dos tropeiros, mora com a esposa Maria das Graças de Sá do Nascimento na comunidade rural de Santa Vitória dos Cocais, que nasceu do antigo cruzamento das rotas dos tropeiros. “Aqui no local tinha uma estalagem que servia de parada para descansar e dar água aos animais”, apontou Geneval. Da sua casa partimos pela estrada que um dia foi caminho dos tropeiros e seguimos na direção do Cachoeirão, onde encontraríamos a antiga trilha ainda na forma original. A primeira parada foi na ponte sobre o Ribeirão do Cocais dos Arrudas, onde uma placa indicava “Trilha dos Tropeiros”.

Durante a caminhada na busca dos vestígios das tropas, Geneval recordava do tempo da fartura, quando transportava em 10 burros, rapadura, feijão, cachaça e toucinho de porco salgado para os ainda distritos pertencentes a Antônio Dias. Sua boa memória relembrava das sacarias de café pilado que seu pai transportava de Joanésia até o armazém do comerciante Silvino Pereira, nas proximidades da estação ferroviária do Calado. Passado cerca de um quilômetro, a expedição passou pela Fazenda do Joaquim Justino, que serviu de rancho para os tropeiros. Logo à frente, a equipe atravessou a fazenda do Bide, notabilizada por um grande número de cães vira-latas de guarda e uma velha ponte. Ainda seguindo pela estrada que no passado serviu de trilha, a caminhada durou cerca de 40 minutos até uma porteira carcomida pelo tempo. A cerca de 500 metros à frente, surge o que a equipe tanto esperava, a trilha original dos tropeiros ainda batida pelas ferraduras dos muares que tanto por ali passaram.

Foi como sentir a sensação de encontrar um tesouro, estar ali pisando numa falha da vegetação por onde os desbravadores transitaram por décadas. A trilha seguia até o Cachoeirão em um cenário de rara beleza, onde podia-se ouvir o barulho das águas tombarem sobre o precipício. Após o registro fotográfico de Elvira Nascimento e a indicação de diversas árvores ainda remanescentes ao longo da trilha, como lobeira, braúna, jacaré, pelo experiente Geneval, a equipe retornou para o ponto de partida, com uma sensação de dever cumprido.

Já com o almoço servido na mesa, o ex-tropeiro, emocionado, relatou sobre seu encerramento na atividade, quando desfez da tropa, indo trabalhar transportando lenha com seus últimos animais. No mesmo local, onde mora até hoje, o casal montou uma cantina que serve almoço encomendado nos fins de semana. Revelando sua visão empreendedora, ele disse que sua casa poderia ser um excelente ponto de partida para uma caminhada turística pelo caminho primitivo dos tropeiros, onde serviria um reforçado café da manhã rural no início da caminhada e o almoço no retorno.

Suas ambições fazem sentido, aliás, de sua casa inicia-se o trajeto para a trilha original dos tropeiros que desciam pelo Cachoeirão, passando pela Ponte Mauá, indo desembocar no Calado.  Após a boa conversa com Geneval, que se orgulhava em mostrar o chicote e o cincerro, sino que se prendia ao pescoço do animal da tropa, guardado com carinho, um novo encontro ficou agendado, para novas expedições, e com certeza, publicá-las nas próximas edições.

Geneval Batista do Nascimento guarda as melhores lembranças do tempo que atuolu como tropeiro, iniciado aos 14 anos de idade – Foto: Elvira Nascimento

 

De Joanésia a Ipatinga; e de Ipatinga a Peçanha, em lombos de burros e mulas

Transportar capado (porco) salgado, cachaça, feijão, milho e café em coco, de Joanésia para Ipatinga, passando por Mesquita, Santana do Paraíso ou Ipaneminha e Pedra Branca, e retornar pelo Cocais, Esmeralda, Cubas, Santo Antônio das Abóboras, Santana de Ferros e Peçanha carregado com café pilado e sal pode ser uma tarefa fácil nos dias de hoje. Mas, em lombos de animais, como faziam os tropeiros no início do século, era no mínimo uma atividade extenuante e repleta de riscos e sacrifícios.

Quem relata sobre esta severa lida que fazia parte do dia a dia da vida dos primeiros homens a cortar a região ainda sem estradas, tocando suas tropas de burros, é o ex-tropeiro Agenor Igídio dos Santos, nascido em Sete Cachoeiras, distrito de Santana de Ferros. Agenor, ainda criança, viajava acompanhando as tropas de seu padrinho, Hélio Dias, desde a região do Alto Rio Santo Antônio ao hoje Vale do Aço.

Montado no cavalo madrinha e com uma garrucha 44 na cintura, o adolescente percorreu toda a região transportando produtos rurais para os ainda distritos do Calado e os povoados de Ipatinga e Timóteo. Ele não esconde o orgulho de ter começado na lida ainda garoto e ter vivido grande parte de sua vida pelas trilhas tropeiras, que levavam até a região central do estado de Minas Gerais. Segundo o ex-tropeiro, de Joanésia a Ipatinga a viagem durava três dias. Sua tropa, composta de um arrieiro, um tropeiro e um cozinheiro, contava com 10 burros.

Cada animal era equipado com cabresto, sopradeira, cincerro, peitoral decorado com níquel, cangalha, sia, sub-carga e transportava até 120 quilos em balaios ou canastras. Elogiando a tropa sob seu domínio e reiterando as qualidades e obediência dos animais, Agenor afirma descontraidamente que um bom burro ou uma boa mula são mais inteligentes do que gente. Sua experiência com animais de carga ficou evidente ao descrever para a Caminhos Gerais os tipos de animais que ele considera de qualidade para compor uma boa tropa.

São eles: Burro Dourado, de Pelo de Rato, Queimado e do rabo curto. Estes eram os melhores, porém, Burro de Orelha Cabana (caída), manhoso e do rabo longo era ruim de serviço ou preguiçoso. Segundo ele, um bom burro de guia valia por duas vacas leiteiras. Recordando os cigarros que fumava, como Continental e Liberty, ele considerava hábitos de luxo, porque o comum era cigarro de palha com fumo de rolo.

Agenor não sente saudades do tempo do tropeirismo. Segundo ele, era uma vida muito dura, levada a muito sofrimento. Vivendo no Bairro Vila Celeste, em Ipatinga, com sua esposa, desde o tempo que o colonião cobria toda a região, Agenor detalha que uma grande mata cobria o local onde foi construída a Usiminas, e que os fornos da Belgo Mineira engoliram toda a mata até o Rio Doce.

Ainda criança, Agenor Igídio em seu cavalo-madrinha percorreu a região guiando tropas

 

Tropeiros das pedras preciosas

O tropeirismo em Antônio Dias provavelmente seja o mais primitivo da região, tendo sua origem no surgimento do próprio povoado, no século XVIII, com a chegada do bandeirante Antônio Dias de Oliveira. Revirando os aluviões na margem do Rio Piracicaba na localidade de Arraial Velho, certamente que as provisões básicas de seu acampamento chegavam de Vila Rica (Ouro Preto) ou de fazendas ao longo dos trilhos, por tropas. Estas, abasteciam outroras minerações instalados na província de Minas Gerais responsáveis pelo surgimento de diversos outros povoados. Pelas tropas, eram transportadas também as riquezas auríferas para os depósitos da Corte.

Numa atividade quase heroica, muitas das vezes abrindo o próprio caminho para a passagem dos animais, os tropeiros desbravaram regiões inóspitas, enfrentaram doenças, animais ferozes, cansaço, alimentação precária entre outras agruras e pelejas.

Quem conta um pouco sobre essa odisséia na região de Antônio Dias, porém, em um período mais recente, é Leandro Alexandre de Sá que fazia o transporte de mercadorias entre o município histórico à Nova Era e Sete Cachoeiras.  Durante dez anos, na década de 1940, Leandro ainda jovem transportava na tropa de Chico de Souza, café, feijão e rapadura para Nova Era e voltava com cachaça. Outro produto que Leandro transportou muito para Nova Era, foi capim, para fabricar colchões. Naquela época, o colchão de capim era uma mercadoria muito comercializada, disse. Saindo do lugarejo de nome Moreira, Leandro seguia pelo trilho de Tio Junqueira, pernoitava no Baú, na madrugada seguia pelo Córrego Frio, Drumond, até chegar a Nova Era. Chegando ao seu destino, atravessava a antiga ponte de madeira – que desabou com o peso de uma tropa de burro carregada com pedras para a construção da igreja Nossa Senhora do Rosário – vindo a descarregar nos armazéns da cidade.

Leandro contou que por diversas vezes transportou até 10 caixas de rapadura para Sete Cachoeiras, povoado pertencente à Santana de Ferros.

O ex-tropeiro relatou também que durante uma período de sua vida, transportava todos os dias em dois burros, de Santa Maria de Itabira a Hematita uma carga de cachaça para o depósito de José Afonso. Desse depósito, a cachaça era enviada para outros comerciantes de Porteira Grande, Cocais das Estrelas, Curriola e Antônio Dias.

Leandro Alexandre transportava cachaça e capim para a fábrica de colchões em Nova Era – Foto Elisângela Santos

 

Mestre Santana – de Tropeiro a Congadeiro

As marcas antigas da lida de tropeiro do hoje atuante presidente da Guarda de Congo da Serra dos Cocais, José Santana de Farias, permanecem em sua memória na forma de causos e versos. Cantando e contando histórias nas apresentações que o grupo faz nas festas de Nossa Senhora do Rosário e outros eventos, ele recorda da antiga atividade que um dia integrou regiões ermas do leste mineiro através do transporte de víveres em lombos de animais que seguiam por caminhos desenhados pelas patas das tropas.

Conhecido por todos apenas como Santana, o ex-tropeiro contou a Caminhos Gerais, que o número de tropas de burro ou mula que se cruzavam nas remotas trilhas da região pode ser comparado com as estradas atuais. “Era um movimento ‘medonho’ de Joanésia, Mesquita e Cubas ao atual Vale do Aço. Quando as tropas se encontravam em lugares estreitos, dava até confusão, pois, os animais se embolavam entre si e em alguns casos até rolavam morro abaixo”, recordou. Ainda comparando o tropeirismo com os caminhões de hoje, ele ressalta que para atender os caminhoneiros, surgiram postos de gasolina, borracharias, restaurantes e oficinas mecânicas ao longo das estradas, gerando desenvolvimento e para atender os tropeiros, surgiram os armazéns, os ferreiros (fabricantes de ferraduras e argolas), as selarias, os ranchos, amansadores de animais entre outras atividades que também geravam desenvolvimento. Vários destes locais se transformaram em povoados e posteriormente cidades.

Para chegar em Coronel Fabriciano, que na época se chamava Calado, contou Santana, havia duas trilhas: a do Cachoeirão e a da Mandioca Assada. Segundo ele, a do Cachoeirão, descia pela mata à beira da cachoeira, passava pelo Córrego do Veado, até desembocar onde é hoje a Ponte Mauá. Essa segunda, descia pela atual estrada principal até Melo Viana, seguindo então pelas margens do Ribeirão Caladão até o Rio Piracicaba. Algumas cargas ficavam no pequeno comércio do Calado e outras eram levadas até o porto das canoas no rio, que seguiam pelas longas canoas até a outra margem, denominado São Sebastião do Alegre, pertencente a fazenda de Chico Santa Maria. No local, ainda hoje funciona um porto de bote, com travessia para o atual Bairro Alegre.

Ele contou também, que ainda garoto, ajudou a tocar como gado solto pela estrada, 80 capados, 40 carneiros, 40 cabritos e 30 perus juntos, de Joanésia até o antigo matadouro de Coronel Fabriciano, que ficava próximo à rodoviária antiga. “Como não havia jeito de transportar os animais em veículos, o recurso era tocá-los estrada a fora”.

De acordo com Santana, oito burros equipados com cangalha e balaios acompanharam os animais na viagem para o caso de algum porco morrer de cansaço. Ele era então limpado ali mesmo na estrada, salgado e trazido para o matadouro. Já as galinhas eram transportadas em balaios separados em camadas e cada compartimento tinha uma portinhola. Elas eram entregues de casa em casa. O antigo tropeiro revelou um fato curioso: “Os primeiros tropeiros da região levavam mercadorias também para Ouro Preto. Eles saíam de Joanésia, passavam por São José dos Cocais, Esmeraldas, Tatu, Mendonça, Itaúna, Santa Maria de Itabira, Itabira, Santa Bárbara, Mariana e chegavam à cidade histórica”.

A carga transportada para Ouro Preto era composta principalmente de polvilho, farinha de mandioca, café pilado, rapadura, toucinho e cachaça. No retorno a tropa trazia arroz, querosene, sal e tecidos. Alguns tropeiros eram também comerciantes. Eles compravam mercadorias e as revendiam ao longo do trajeto. Outros apenas transportadores contratados por fazendeiros. Morador em Santa Vitória dos Cocais (Cocais de Baixo), na região rural de Coronel Fabriciano, Santana recorda de quando o povoado era apenas uma fazenda pertencente a Antônio Bonifácio, que dá nome a atual praça da localidade. Na antiga fazenda os tropeiros faziam o rancho sob um imenso galpão forrado com palha de coco e dormiam sobre a manta de couro que cobria as cangalhas. Pernoitavam no local até 15 tropeiros misturados às cargas, enquanto os animais se espalhavam pelos pastos dos arredores. De manhã, bastava tocar os guizos que os animais se juntavam ordeiramente em fila, sendo que cada burro levava até três arqueiros de carga, isto é, 120 quilos. Perguntado por que o tropeirismo se extinguiu, Santana respondeu que foi devido à chegada dos caminhões, que transportavam de uma só vez a carga equivalente a cem burros.

Bandeira turística

Ciente de que o tropeirismo é hoje uma cultura pouco reconhecida, o ex-tropeiro deu uma dica empreendedora para a valorização e perpetuação desse ofício que faz parte da história da região: construir na Praça de Santa Vitória do Cocais um monumento ao tropeiro, já que o povoado originou-se dessa importante atividade. Ele acrescentou que deveriam criar uma festa do tropeiro tendo como atrações a culinária típica, exposição com mostras de objetos e animais, música e causos caipiras. O evento seria um empreendimento turístico promissor, pois atrairia um público variado, entre eles os cavaleiros da região e até os descendentes de tropeiros. Seriam ainda promovidas caminhadas turísticas pelos lugares por onde os tropeiros trilharam na Serra dos Cocais. Na opinião de Santana deveria ser aprovada lei municipal decretando o Dia do Tropeiro.

As projeções de Santana vêm de encontro com a necessidade de integração da cultura regional, que tem no tropeirismo comprovado alinhamento histórico e geográfico, servindo para fortalecer o viés turístico da Região Metropolitana do Vale do Aço (RMVA). Provavelmente pelo caminho da cultura, onde perpassa a identidade regional, a RMVA poderá iniciar sua verdadeira consolidação. A visibilidade histórica do tropeirismo seria também um contraponto à história tradicional e simplista do Vale do Aço, que preconiza o início da região apenas com a chegada da estrada de ferro e a construção das siderúrgicas, ocorrências contemporâneas.

José Santana de Farias ou Mestre Santana, quando não está transmitindo suas vivências como um bom contador de histórias, está organizando as apresentações da Marujada dos Cocais – Foto: divulgação

 

Uma atividade desgastante, mas muito compensadora

Nascido em Cubas, distrito de Santana de Ferros, José Alves de Almeida percorreu inicialmente as primitivas estradas de tropeiro até o também povoado de Borba Gato (local onde se fixou o famoso bandeirante) e Ferros, levando café pilado da fazenda de seu pai e voltando com arroz, sal e querosene. Sua experiência como tropeiro vem desde a infância, quando já madrinhava a tropa da fazenda. Já adulto e com sua própria tropa de burros, ele transportava galinha, café, cachaça, queijo e rapadura para os povoados do Calado (Coronel Fabriciano) e Santo Antônio do Gambá (Melo Viana).

José Alves recordou de outros tropeiros como José Gonçalves, Quito Gonçalves, Abelardo Araújo, Crioulo do Enéias, Geraldo Idelino, Zico da Salvina e Albertino. Apesar da amizade entre eles, José Alves comentou que os tropeiros não eram unidos quanto a políticas de preços ou sistema de trabalho. Cada um negociava individualmente com seu contratante conforme sua necessidade.

Segundo José Alves, no cavalo madrinha era afixado o cincerro, sino utilizado para manter os burros sempre unidos em torno do cavalo-guia, o que facilitava o ajuntamento da tropa mesmo no escuro da noite ou madrugada. Para perfilar os burros, o tropeiro balançava a taca, tipo de chicote com guizo, e os animais se organizavam. O antigo tropeiro lembrou das qualidades de seus animais, relatando que sua mula de guia chamava-se Bahia e a de coice – que ficava no final da tropa, Revista.

Ele recordou também de Antônio Carneiro, um ferreiro que fabricava ferraduras e argolas no Melo Viana, bem como do armazém do Coronel Silvino Pereira e da Casa Giovannini, que vendiam artefatos e ferramentas para tropeiros. Mas existiam os tropeiros que fabricavam as próprias cangalhas. Com a atividade de tropeiro José Alves adquiriu uma propriedade em Cubas onde vive até hoje. Orgulhoso da profissão de tropeiro, ele explicou que a atividade exigia muito esforço, porém era um trabalho muito compensador.

Ivart Oliveira de Assis, Clodomiro de Jesus (Miro) e os ex-tropeiros Aristóteles Alves e José Alves de Almeida, numa roda de conversa recordando o tempo da lida com as tropas

 

Museu Vivo: espaço em Ipatinga mostrava a história através de raros objetos antigos

Colecionar antiguidades é uma das atividades mais prazerosas, porém, uma das mais trabalhosas. Principalmente antiguidades de mobiliários, equipamentos eletrônicos, instrumentos musicais, de comunicação, de tropeiros, rural e da área de artes e ofícios, que requerem mais espaços físicos e conservação permanente. Mas, não é assim que pensa Geová Aguiar dos Santos, baiano de nascença e ipatinguense de coração. O memorialista e colecionador, cuida de um riquíssimo acervo de objetos históricos que um dia foi de sua coleção particular e hoje pertence à Associação Cultural Museu Vivo (ACMV). Infelismente, por falta de recurso, o espaço foi fechado e sua coleção voutou para a sua casa.

O amor que Geová Aguiar cultiva pelos objetos expostos no museu, aberto ao público, superou diversos desafios, a começar dentro da própria casa, quando sua esposa dizia que a casa estava pequena para eles e as antiguidades. Com toda razão, gramofone, vitrolas, máquinas de escrever, rádios, projetores de cinema, teares, armários, canastras de tropeiros, são objetos de grandes dimensões, e necessitam de amplos espaços físicos. O curador do museu revelou que levou tempo para sua esposa aceitar sua coleção.

Outro desafio que o colecionador vivenciou para adquirir uma nova peça para a sua valiosa coleção lhe valeu três meses de trabalho como vendedor ambulante em Vitória (ES). Ele ficou sabendo que um par de caçambas (tipo de estribo fechado, feito de metal, bronze ou latão) pertencente a um dos primeiros tropeiros da região, Jair Gonçalves, estava na casa de um dos agregados da antiga tropa, na capital capixaba. Obstinado, Geová Aguiar viajou para a cidade litorânea e trouxe as duas peças.

Ele iniciou sua coleção em 1980, transformando-a em instituição cultural em 1993. O museu era mantido pela prefeitura de Ipatinga e por verbas de leis de incentivo à cultura.  A importância do ACMV transcendia as fronteiras do município ipatinguense. O museu contava a saga dos primeiros transportadores de mercadorias da região que atravessaram o Vale do Rio Doce de norte a sul. Quando por aqui, tudo era uma grande mata, tropeiros de Barra Alegre, da tropa de Jair Gonçalves, de Silvino Pereira, dos familiares dos Madeira, e de Tessilino, pioneiro que chegou à região por volta de 1850, traziam víveres de Joanésia, Santana de Ferros, Cubas, Mesquita e Antônio Dias. Ou transportavam lenha para as máquinas a vapor da estrada de ferro que avançava para Itabira. Nos objetos é possível distinguir um tropeiro com menos recurso financeiros, por meio das rústicas peças de ferro fundido, de um tropeiro abastado, que utilizava ornamentos de prata, alpaca e aço níquel.

Na região existem vários outros segmentos cuja história está pouco representada fisicamente. Segundo Geová, sua maior satisfação era quando o espaço ficava cheio de estudantes que regularmente eram levados pelas escolas. Para ele, a história só serve para ser apreciada e ser compreendida, e somente as pessoas podem fazer isto.

A coleção particular de Geová Aguiar compõe-se de um valiosíssimo conjunto de artefatos tropeiro – Foto: Elvira Nascimento

Faça um Comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Você não pode copiar o conteúdo desta página